Por que fazer sentido não é suficiente para algo ser verdade?
O mundo está em fluxo, mas não puro fluxo. Não é verdade que nada no homem se preserva quando ele desce o rio pela segunda vez, assim como não é verdade que tudo nele é permanente. Muitas coisas do Flávio de hoje vão se manter no Flávio de amanhã, mas também haverá coisas do Flávio de hoje que deixarão de existir.
Algumas das coisas que tendem a permanecer estáveis são os sistemas, os conjuntos de partes que de alguma maneira se organizam em um todo, e as leis que possibilitam essa organização. Se nada drástico acontecer, o Sol vai continuar na distância da Terra que propicia a existência de vida, algo que é possibilitado pela força de atração entre os corpos, a lei da gravidade, que por sua vez, permanece.
Isso implica que a realidade não é puro caos; existem nela padrões de organização. No plano material, esses padrões são passíveis de serem identificados a partir da interpretação do que é percebido. Com isso, é possível identificar a presença dos padrões 'alimento' e 'predador', por exemplo. Animais menos evoluídos já fazem isso bem. Afinal, os indivíduos da espécie que não eram tão bons nisso acabaram ficando pelo caminho.
Aqueles indivíduos que exibem maior rapidez e precisão na identificação de padrões no ambiente alcançam 'alimentos' e fogem de 'predadores' mais rapidamente, levando vantagem na luta por sobrevivência. Assim, é possível conceber a evolução das estruturas e processos cognitivos como uma competição por informações razoavelmente confiáveis a respeito de padrões, em especial do que é benéfico e maléfico. Com isso, quero defender que o aparato cognitivo dos outros animais, assim como o nosso, é eficaz em captar padrões da dimensão da percepção, e que assim, na grande maioria das vezes em que percebemos um padrão do mundo material, este se trata de um padrão que realmente existe. Deixando de lado as discussões semânticas, se percebemos uma árvore em nossa frente, por exemplo, é praticamente certo que o que estamos vendo é mesmo uma árvore.
De uma maneira geral, podemos dizer, então, que as coisas do mundo da dimensão da percepção possuem validade de face, ou seja, além de fazerem sentido pelo fato de estarmos detectando um padrão, elas são próximas da verdade. Isso graças ao desenvolvimento de um bom aparato cognitivo ao longo de milhões de anos de evolução. Contudo, essa regalia, a da validade de face, não a temos no mundo da abstração.
O surgimento dos humanos, algo que é bem recente em termos do tempo evolutivo, coincide com o surgimento da capacidade de elaborar o porquê das coisas, de elaborar teorias sobre a realidade. Essa é uma capacidade que só nós temos. Nenhum outro animal consegue ter qualquer noção teórica e abstrata do conceito de gravidade, por exemplo, mesmo que ela influencie o tempo todo sua interação com o meio.
A capacidade de teorizar nos colocou, então, na condição de vantagem na luta por sobrevivência, pelo fato de nos permitir alcançar informações verdadeiras sobre a realidade, ou melhor, próximas da verdade, para além da província da percepção. Adquirimos a capacidade de adentrar na dimensão dos porquês e, com isso, ter informação privilegiada sobre padrões da realidade. O resultado disso já sabemos: o ser humano se tornou a espécie dominante do planeta.
Acontece que essa dominação se deu por termos conseguido adquirir algumas noções teóricas que refletem bem a realidade, a grosso modo, noções próximas da verdade, como falei. Contudo, com a nossa capacidade de adentrar na dimensão dos porquês, veio também a capacidade de viajar na maionese, de elaborar associações teóricas que podem fazer sentido na nossa cabeça, mas que, na verdade, não refletem a realidade. Isso acontece, talvez, pelo fato de a capacidade de compreender os porquês ser ainda muito recente, e, por isso, ainda não estar lapidada o suficiente pela evolução.
Além disso, vale ressaltar que a seleção natural muitas vezes não nos pune no processo de criação de teorias espúrias da realidade. Ela não nos pune quando criamos uma teoria que não prejudica nossa adaptabilidade, como a de que sacrificar um carneiro vai agradar uma divindade e trazer boa sorte; e, além disso, ela não nos pune quando criamos uma teoria errada, mas que tangencia elementos de verdade aproximada e que são úteis para a nossa sobrevivência.
Um exemplo relativamente recente foi o advento do costume dos médicos lavarem as mãos entre manipular um corpo morto, em decomposição, e um corpo vivo. Acreditava-se que a lavagem removia partículas cadavéricas das mãos dos médicos, diminuindo, assim, a mortalidade dos pacientes. O ato é útil, pois ele evita a contaminação, mas pelos motivos errados. Assim, a teoria que fez sentido na cabeça dos médicos, apesar de funcionar, estava errada, pois não capturava a causa, não explicava o que, de fato, estava por trás do fenômeno da contaminação e das mortes.
Essa fraqueza que temos, a de acreditar, de cara, em algo que faz sentido na nossa cabeça, possivelmente tem a ver com nossa herança animal. Em um experimento, um psicólogo demonstrou que, se pombos fossem alimentados em intervalos regulares, eles passavam a acreditar que um comportamento que fizeram por acaso estava associado à chegada do alimento. Nesse experimento, um pombo, por exemplo, acabou adotando o costume de ficar girando em sentido anti-horário.
Vale ressaltar, contudo, a artificialidade do experimento. No mundo real, fenômenos de curto prazo geralmente não ocorrem de maneira regular, e, assim, dificilmente vamos ter pombos com “tiques nervosos” por aí. Com isso, acredito que a maioria das associações que os animais percebem são, de fato, próximas da verdade, e, por isso, adaptativas. Assim, evolutivamente compensa e muito acreditar em associações da dimensão da percepção, pois a maioria seria próxima da verdade, e seria por isso, então, que, a meu ver, seríamos inclinados a acreditar em qualquer associação que faça sentido em nossa cabeça, inclusive as teóricas.
O fato é que, diferentemente do que ocorre com as coisas da dimensão da percepção, as coisas da dimensão dos porquês não possuem validade de face e, assim, as chances de associações concebidas serem próximas da verdade reduzem consideravelmente. Elas podem fazer sentido na nossa cabeça, assim como faz sentido o mundo de Harry Potter ou o de Senhor dos Anéis, mas não explicam, de fato, o que ocorre no mundo real.
A natureza dessa diferença deriva do fato de que as crenças da dimensão da percepção são constantemente testadas frente à realidade. A hipótese de que um desconhecido está dentro da sua casa é rapidamente desconfirmada quando você percebe que era só o chapéu no cabide. Entender essa diferença é crucial para ter uma relação saudável com suas crenças da dimensão dos porquês. É preciso, então, simular no âmbito dos porquês o que acontece de maneira fluida no âmbito da percepção.
Precisamos nos manter, então, com os pés na realidade, nos esforçando para testar e validar nossas teorias, ou melhor, nossas hipóteses teóricas. Mas de que forma? Nos esforçando para confrontar nossas teorias com os fatos que observamos. Não tem para onde correr. Não tem como tomarmos como garantido que as coisas que fazem sentido na nossa cabeça são verdadeiras.
Lembre-se de que o que observamos em si, em geral, tem validade de face, mas não nossas teorias. Mas, se as teorias refletem as coisas que observamos, a validade de face dessas últimas pode ser, de certa forma, transportada para nossas teorias, por assim dizer, pelo menos até não termos um fato contrário a elas. A gente pode teorizar que todos os cisnes do planeta são brancos, mas, se virmos um preto, temos que estar dispostos a rever nossa visão de mundo. Mas o apego às nossas próprias crenças não é algo fácil de lidar, e, assim, não raro podemos tentar classificar o cisne preto não como um cisne de verdade.
Pensata que criei e que têm a ver com o tema:
Caso queira conhecer cada vez mais sobre Filosofia, convido você a participar do Grupo para Sugestões de Livros e Cursos que Elevam o Saber.
Comentários
Postar um comentário