O que é ser racional?
A gente se define como seres racionais pelo fato de percebermos que conseguimos agir de uma maneira que os outros animais não conseguem. Assim, um bom caminho para entendermos o que é ser racional é olharmos para o que temos em comum com os outros animais e o que só nós somos capazes de fazer.
De fato, temos muitas coisas em comum com os outros animais. Assim como eles, fazemos uso do pensamento categórico para conhecer e interagir com a realidade. Isso implica que, assim como eles, sentimos emoções, que, como falei no post “O que são as emoções?”, se referem a avaliações — isto é, à categorização de que devemos buscar um objetivo em determinado momento, como o objetivo de "eliminar uma ameaça", o que nos faz sentir raiva; e categorizações de que o objetivo foi ou não alcançado, o que, caso percebamos que conseguimos eliminar a ameaça, nos leva a sentir alegria.
Realizar avaliações desses tipos significa praticar o pensamento categórico, ou seja, raciocinar em alguma medida. Com isso, quero dizer que os outros animais também raciocinam. A ideia de achar que eles são seres automáticos é um erro. Se um chimpanzé macho vê uma fêmea no cio e está “necessitado”, ele deve categorizar que o certo a se fazer é buscar o benefício da cópula, o que o leva, naquele momento, a sentir anseio por “dar uns beijos” nela.
Mas isso não significa que ele vai seguir esse impulso cegamente. Se ele vê que o ciumento macho alfa está perto dela, ele pode classificar que está diante de uma ameaça e, com isso, que o certo a se fazer é escapar dessa ameaça, o que faz com que ele sinta medo.
Nosso chimpanzé está, então, enfrentando um dilema, e para resolvê-lo ele deve exercitar algum nível de autocontrole, fazer uma rápida ponderação, embora rudimentar, e assim realizar uma escolha. Não sei dizer qual será, depende muito de sua história de vida e de sua genética.
Com esse exemplo, podemos notar que a ponderação não é algo exclusivo dos humanos. Aristóteles sabia disso e, em uma passagem, ele reconhece existir uma espécie de prudência nos animais não humanos. Então, eu digo, para a surpresa de muitos, que realizar escolhas ponderadas não significa ainda ser racional, pois outros animais são capazes de fazer isso.
Mas, se outros animais são capazes de ponderar, o que é que só nós somos capazes de fazer? Isso Aristóteles também conseguiu perceber. Ele viu que é peculiar do ser humano querer saber o porquê das coisas.
De fato, experimentos com crianças ainda em fase pré-verbal mostram que elas se interessam em buscar explicações sobre as coisas, ao passo que chimpanzés adultos não estão nem aí para isso.
Isso implica que uma diferença básica entre nós e os outros animais é que conseguimos entrar no nível da abstração, enquanto eles só conseguem raciocinar com base no que percebem. Isso significa que podemos avaliar as coisas não apenas com base no que percebemos, mas também com base em nossas teorias.
Mas qual a implicação prática disso? Na prática, podemos, ao categorizar algo, "bater" essa categorização com nossas teorias, de modo a ver se essa categorização está de acordo ou não com o que acreditamos. E aí, se não estiver, podemos categorizar de uma outra forma. Vamos a um exemplo comparativo: Um animal, se vê um alimento, e não tem nenhum outro estímulo que concorra com este, e ainda estiver com fome, vai sentir anseio e ir atrás do alimento.
A gente pode, mesmo com fome, mesmo sem uma outra coisa que nos chame a atenção, decidir não pegar um alimento que ansiamos comer, pelo fato de estarmos seguindo alguma regra própria, como “preciso fazer jejum”, pois acreditamos que o jejum nos trará melhores consequências.
Esse exemplo serve para mostrar que somos capazes de, com base em nossas teorias — em especial o vislumbre de consequências teóricas — reinterpretar as coisas para nos comportarmos de outra maneira. Isso só nós somos capazes de fazer. Então, podemos dizer que ser racional, ou agir racionalmente, é, basicamente, supervisionar a linha de ação que estamos prestes a seguir e tomar uma decisão consciente de aceitá-la ou revisá-la, com base em uma ponderação das consequências que “bebe” de nossa rede de teorias, de nossa visão de mundo atual.
Essa definição faz cair por terra três noções imprecisas sobre o que é agir racionalmente:
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A primeira noção é ser tipo um robô, considerar que nossas emoções são supérfluas ou, até mesmo, nossas inimigas. Essa é uma noção imprecisa, pois conscientemente aceitar a linha de ação que estamos prestes a seguir significa simplesmente aceitar o objetivo que a emoção já nos impulsiona a buscar, o qual ela, inclusive, nos ajuda a realizar. A emoção, nesse caso, é uma baita amiga. E, nos outros casos, quando a emoção não aponta para a direção que acreditamos ser a certa, podemos achar que ela mais atrapalha do que ajuda. Mas lembra daquela frase “Quem avisa amigo é”? Então, nesse caso, podemos também ver as emoções como amigas, pois elas revelam que estamos sentindo interesse por algo que vai contra o que acreditamos ser o certo — ou seja, que ainda valorizamos coisas que achamos que não deveríamos valorizar para o tipo de contexto que se apresentou para a gente.
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A segunda noção imprecisa é que toda escolha racional é realmente boa. Nem sempre é uma boa escolha em termos objetivos, pois o saber da pessoa pode não refletir bem a realidade, e aí a escolha, com base no saber que ela possui — e, assim, racional para o momento — pode acabar não lhe trazendo boas consequências. Contudo, na medida em que o saber da pessoa vai evoluindo, no sentido de refletir melhor a realidade, suas escolhas racionais vão se tornando escolhas realmente boas.
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A terceira noção imprecisa é que toda ação racional é egoísta, nunca altruísta. Podemos compreender que essa noção tem problemas pelo fato de existir uma falsa dicotomia entre o bem de si e dos outros, no sentido de que, se somos seres sociais, ao tomarmos decisões objetivamente boas em favor de nós mesmos, estamos, ainda que indiretamente, contribuindo para o bem do grupo. Quando cuidamos corretamente da nossa saúde, por exemplo, não nos tornamos um peso para o grupo; ao contrário, nos tornamos um membro mais capaz de ajudar os outros. Nos tempos atuais, quem cuida corretamente da saúde, por exemplo, não precisa ser atendido com frequência pelo sistema público de saúde, e, assim, contribuirá para um menor gasto do dinheiro público.
É bem comum na filosofia antiga a orientação do tipo “não deixe que sua interpretação das coisas seja dominada pela sensação de dor ou prazer”. Isso porque, em geral, valoriza-se a racionalidade, que, como falei mais cedo, tem a ver com tomar decisões não só com base no que percebemos — e aí entram as sensações de dor e prazer —, mas também com base em nossas teorias. Por sinal, aquele termo “retidão” ou “vida reta”, a meu ver, se refere justamente a isso: a tomar decisões sempre em linha com o que acreditamos ser o certo, ou seja, agir racionalmente.
Pensata que criei e que têm a ver com o tema:
"Eu prefiro cometer erros fazendo o que minha razão e coração mandam do que acertar fazendo o que os outros acham que eu deveria fazer."
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