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Mostrando postagens de 2025

O império da subjetividade sobre a realidade

Ao buscar uma base inteiramente firme para o conhecimento, Descartes acabou deslocando o eixo da verdade: o que antes se apoiava no mundo e em sua ordem comum passou a residir no interior da consciência. Em sua tentativa de fundar o saber não mais na tradição, na autoridade ou na revelação divina, mas na própria capacidade humana de pensar, ele desconfiou de tudo o que pudesse ser enganoso — dos sentidos, das crenças, dos mestres — e procurou um ponto inabalável sobre o qual pudesse edificar a ciência. Ao encontrá-lo no “penso, logo existo”, inaugurou uma virada decisiva na história da filosofia: a certeza do pensamento passou a valer mais que a certeza do mundo. Como observa Hannah Arendt, a solução cartesiana para o “pesadelo da dúvida” não foi o retorno à realidade para além dos dogmas, mas o refúgio na consciência. Diante da incerteza sobre o que é externo, Descartes descobriu uma ilha de segurança no próprio ato de duvidar: mesmo que tudo fosse falso, o fato de duvidar era indubit...

A importância da dúvida em tempos de certeza

A dúvida cartesiana marcou um ponto de inflexão na história do pensamento ocidental. Ao propor que tudo deveria ser posto em questão até que algo se mostrasse absolutamente indubitável, Descartes abriu o caminho para uma nova forma de rigor intelectual, uma ciência que se pretendia autônoma em relação à religião. No entanto, ao atacar as certezas de maneira tão radical, essa mesma dúvida atingiu também as certezas religiosas, abalando a confiança tradicional no fundamento divino do conhecimento. Neste sentido, a fé moderna passou a ser atravessada pela dúvida, e, a partir dessa dúvida, surgiram novas exigências: (1) a necessidade de tratar as coisas como hipóteses; (2) a diligência de testá-las; e (3) tentar alcançar o sucesso nesses testes, que, em caso de comprovação, coincide com o alcance de verdades — ainda que provisórias. Desse modo, a dúvida, ao invés de paralisar, transforma-se em atitude investigativa; e longe de dissolver o valor da verdade, acabou fundando um novo modo de r...

Por que as pessoas têm dificuldade em lidar com críticas construtivas?

A gente costuma ouvir que existem dois tipos de crítica: a destrutiva e a construtiva — ou, em outras palavras, o simples ataque e o feedback genuíno. Mas, na prática, a maioria das pessoas tende a reagir a qualquer tipo de crítica como se fosse uma ofensa pessoal. Por quê? A resposta está na nossa história evolutiva. O ser humano é, por natureza, um animal social. Durante milhares de anos, viver em grupo foi essencial para sobreviver — era no grupo que encontrávamos proteção, comida e parceiros. E dentro desses grupos, o status social tinha (e ainda tem) um papel fundamental: quem tinha mais prestígio tinha acesso a mais recursos e segurança; quem estava abaixo, passava mais dificuldade. Uma das formas de conquistar status sempre foi ser bom em algo — caçar melhor, prever o tempo, curar ferimentos, fabricar ferramentas. Agora imagine o que acontecia quando alguém apontava que você não era tão bom assim quanto parecia. Isso não era apenas um comentário: era uma ameaça real ao seu lugar...

Como Tomás de Aquino transformou a ética das virtudes em uma ética do dever?

Aristóteles inaugurou a sistematização escrita de distintos temas, tornando-se o fundador das bases filosóficas de uma miríade de disciplinas. No entanto, os campos ligados à vida coletiva, como a ética e a política, foram prejudicados em seu desenvolvimento. Isso ocorreu em grande parte pela negligência em relação aos seus escritos, muitas vezes utilizados apenas como justificativa para crenças religiosas, em vez de como ponto de partida para a descoberta de verdades. Nesse contexto, o trabalho de Tomás de Aquino é digno de nota. Em sua síntese cristã, ele não buscou nos escritos de Aristóteles um meio de desvendar a natureza em si, mas os subordinou à doutrina cristã, transformando-os em instrumentos para justificar a fé. Com isso, a ética das virtudes proposta por Aristóteles, centrada na tomada de decisões prudentes com base no saber e no discernimento pessoal, foi reinterpretada como uma ética do dever, fundamentada na obediência a preceitos gerais revelados por Deus. Essa transfo...

Por que a prática de vícios é fundamental para o desenvolvimento das virtudes?

Por mais surpreendente que pareça, conhecer os vícios, e até experimentá-los, em certa medida, é essencial para o desenvolvimento das virtudes.  Isso porque, como ensina Aristóteles, (1) a virtude está no meio termo entre dois vícios, sendo que um deles costuma estar mais próximo da virtude do que o outro; e (2) encontrar esse meio termo é extremamente difícil.  Essas duas afirmações implicam que precisamos, primeiro, reconhecer qual vício está presente em nossa personalidade e, em seguida, buscar nos aproximar da virtude correspondente. Porém, nesse esforço, é comum acabarmos cometendo o vício oposto ao nosso, e tudo bem. Esse desvio faz parte do processo de aprendizado.  Por exemplo, alguém que se reconhece como covarde precisa aceitar que, ao tentar ser mais corajoso, pode acabar cometendo atos temerários, ou seja, se expondo a riscos desnecessários. Tais exageros, no entanto, contribuem para o enfraquecimento gradual da covardia.  Com o tempo, e a partir da refle...

Quais são os pontos fortes e fracos do estoicismo?

Em sua obra Teoria dos Sentimentos Morais , Adam Smith nos oferece uma boa síntese do pensamento estóico, e então procede com suas considerações a respeito dela. Inspirado por tal atitude, aqui busco fazer o mesmo, mas de acordo com a minha visão sobre o estoicismo. Neste sentido, me valho da síntese elaborada pelo filósofo, lapidando-a em algumas poucas imprecisões (e aprofundando alguns aspectos), para então abordar o que vejo serem pontos fortes e fracos de tal pensamento. Síntese do pensamento estóico De acordo com Zenão, fundador do estoicismo, todo ser vivo é naturalmente inclinado à autopreservação e dotado de amor por si mesmo. Isso o leva a buscar manter sua existência e todas as partes da sua natureza na melhor condição possível. No ser humano, esse instinto abrange tanto o corpo quanto a mente, com todas as suas faculdades, e orienta-o a conservar e aperfeiçoar essas partes conforme a razão natural.   Assim, tudo o que favorece a manutenção dessas partes – como saúde, vi...

Como é a estrutura da evolução do saber humano?

Gosto muito da metáfora da árvore que Thomas Kuhn usa para ilustrar a evolução do conhecimento humano. Ela não pretende descrever uma estrutura exata, mas sim destacar que o conhecimento não evolui de forma linear. Em certos casos, teorias antigas — que estariam nas partes mais baixas da árvore — podem ser superiores a teorias mais recentes, situadas em galhos mais altos.  Essa metáfora pode ser expandida. Além de representar a não linearidade da evolução do conhecimento, ela também pode nos ajudar a entender sua estrutura . Nesse sentido, podemos imaginar: As raízes : representam as estruturas cognitivas básicas, cuja função é absorver elementos do mundo exterior para alimentar o pensamento. A seiva : simboliza os raciocínios. São eles que percorrem toda a estrutura da árvore e, quando conduzem a conclusões sólidas, geram crescimento. O tronco : formado por conclusões básicas e autoevidentes — verdades que até os animais não humanos são capazes de perceber, como a exist...

O que é um bom ser humano?

Então... se não formos muito exigentes, podemos dizer que um bom ser humano é aquele que tem mais vícios do que virtudes — mesmo que seja só um pouco a mais — e, com isso, se comporta racionalmente em pelo menos 51% das vezes; nas outras 49%, age seguindo cegamente alguma inclinação ancestral, ou se mostra desatento, e assim pratica algum vício. Mas, cá para nós, esse é um ser humano "bonzinho", não exatamente um bom ser humano. Assim, entendo que um bom ser humano deve, para começar, apresentar um percentual bem mais alto do que esse — talvez se comportar racionalmente em 90% das vezes (especialmente em situações cruciais), ou seja, ser estavelmente racional. No entanto, ser estavelmente racional, a meu ver, ainda não é condição suficiente para vermos a pessoa como um bom ser humano. Isso porque agir racionalmente é agir com base no que se sabe até o momento. E, se a pessoa não sabe quase nada (o que inclui possuir um “saber” que não reflete razoavelmente bem a realidade), ...

O que é o autocontrole?

O autocontrole é uma faculdade que permite a ponderação a partir da chegada de uma nova informação, seja ela proveniente do mundo das percepções, das teorias, ou de ambos. Assim, trata-se de uma faculdade que não apenas nós, humanos, possuímos, mas também outros animais. Por exemplo, se um chimpanzé macho “necessitado” vê uma fêmea no cio, essa percepção pode levá-lo a inclinar-se para tentar copular. No entanto, se logo em seguida ele percebe a presença do macho alfa “ciumento” ao lado dela, essa nova informação tende a levá-lo a evitar o risco de sofrer uma agressão. Com isso, ele exercita, em alguma medida, o autocontrole, ponderando qual comportamento é mais vantajoso naquela situação. No caso dos humanos, também enfrentamos conflitos e exercitamos o autocontrole diante da chegada de novas informações perceptivas. Entretanto, uma informação resgatada da nossa visão de mundo também pode ser suficiente para nos levar à ponderação. Por exemplo: podemos perceber uma mulher atraente “d...

O que é a virtude da tristeza consciente?

A virtude da tristeza consciente se refere à habilidade de praticar uma autorregra do tipo: “preciso avaliar se tive mesmo fracasso na presença ou ausência de tristeza” . Assim como no caso da alegria consciente, essa prática ajuda a corrigir avaliações excessivamente otimistas ou pessimistas, de acordo com o saber e a experiência da pessoa. A tristeza, quando bem compreendida, cumpre um papel importante: o de incentivar o abandono de estratégias ineficazes que vêm sendo adotadas. No post “O que é a virtude da alegria consciente” , citei o exemplo do músico que percebe que não está alcançando o sucesso desejado ao tocar músicas covers. Embora receba aplausos e sinta alegria por isso, ao ter um momento de insight — a “ficha cair” — ele deixa de sentir alegria e entra num estado de neutralidade emocional. Entretanto, se ele estivesse praticando a virtude da tristeza consciente , talvez tivesse sentido tristeza em vez de neutralidade. Essa tristeza, por sua vez, poderia funcionar como um...

Por que Sócrates agiu eticamente ao aceitar a morte mesmo sabendo que foi condenado injustamente?

Sócrates, um dos maiores nomes da filosofia ocidental, foi levado a julgamento em Atenas no ano de 399 a.C., acusado de três crimes considerados graves para a sociedade da época: corromper a juventude, não reconhecer os deuses da cidade e introduzir novas divindades, especialmente ao falar de um daimon — uma espécie de voz interior que o guiava. Diante do tribunal, Sócrates não tentou se esquivar das acusações com bajulações ou artifícios retóricos. Pelo contrário, fez uma defesa firme e coerente, registrada por seu discípulo Platão na obra Apologia de Sócrates . Afirmou que sua vida sempre foi dedicada à busca da verdade e da virtude. Não se via como um mestre, mas como alguém que fazia perguntas para despertar a reflexão nas pessoas, desafiando crenças automáticas e ilusões de sabedoria. Sócrates destacou que nunca obrigou ninguém a segui-lo, nem impôs suas ideias — seu papel era provocar o pensamento crítico. E mais: afirmou estar cumprindo uma missão filosófica que, segundo ele, l...

O que é a virtude da alegria consciente?

A virtude da alegria consciente refere-se à habilidade de praticar uma autorregra do tipo: “preciso avaliar se tive mesmo sucesso, considerando a presença ou ausência de alegria”. A prática de uma autorregra desse tipo ajuda a corrigir avaliações irracionalmente otimistas ou neutras. Assim, alguém que está desenvolvendo a virtude da alegria consciente consegue, por exemplo, desistir de seguir um caminho — ou seja, de continuar utilizando as mesmas estratégias — por ser capaz de corrigir avaliações equivocadas, como a crença de que está alcançando conquistas quando, na verdade, não está. É o caso, por exemplo, de um músico que, com base em seu conhecimento, desiste de continuar tocando músicas cover ao perceber que, embora receba aplausos em seus shows, não está alcançando o patamar de sucesso que almeja. Ele decide, então, adotar uma nova estratégia: passar a tocar músicas de sua própria autoria. Nesse cenário, o músico poderia estar se iludindo com base no melhor de seu saber sobre es...

O que é a virtude da curiosidade útil?

Curiosidade útil se refere à habilidade de praticar uma autorregra do tipo: “preciso escolher o melhor fim, esteja ou não sentindo curiosidade”. A prática dessa autorregra pode levar ao assentimento rápido de que um fim “fixado” , relacionado à investigação de algo, é de fato o melhor a ser buscado no momento. Nesse caso, não haveria necessidade de revisar o fim estabelecido, uma vez que ele passou pelo crivo de uma avaliação das consequências com base em teorias. Um exemplo disso é a decisão de uma pessoa de ler um livro relacionado ao seu campo de atuação ou, até mesmo, de ler conteúdos banais por considerar útil relaxar naquele momento, a fim de recuperar as energias. Contudo, nesse último caso, ao atingir um estado de relaxamento, a pessoa pode — ainda com base no tipo de princípio que estamos propondo — avaliar que continuar investigando coisas banais já não faz mais sentido. Nesse momento, seria racional deixar a curiosidade de lado e parar de investigar essas coisas, ao perceber...

O que é a virtude do amor?

A virtude do amor se refere à habilidade de praticar uma autorregra do tipo: “preciso buscar o melhor fim na presença ou ausência da compaixão”.Lembrando (como mencionei no post "O que são as emoções") qie a compaixão surge da avaliação de que algo — ou alguém — é um aliado (ou um aliado em potencial) em meio a uma dificuldade, o que gera, em nossa mente, o estabelecimento do fim de promover o seu bem. Em muitos contextos, podemos entender que esse é, de fato, o melhor fim a se buscar — como quando vemos um amigo em dificuldade financeira e, com base no melhor do nosso saber, julgamos que o mais correto é ajudá-lo a pagar as contas.Nesse caso, há uma validação consciente tanto da compaixão já vivenciada quanto do objetivo a ser realizado, e é justamente aí que ocorre a prática da virtude do amor . A virtude do amor também se manifesta quando saímos de um estado de neutralidade — talvez fruto da falta de atenção ao fato de que estamos diante de alguém que sabemos precisar de ...

O que é a virtude da moderação?

Moderação se refere à habilidade de praticar uma autorrregra do tipo: “preciso buscar o melhor fim, esteja ou não presente o anseio”. É possível haver apenas a anuência consciente de que o melhor fim é aquele para o qual o anseio aponta — como no caso, por exemplo, de querermos mostrar nossas “credenciais” (busca pelo benefício do status), tendo a consciência de que desejamos isso por alguma razão; talvez para que o outro valorize um pouco mais aquilo que temos a dizer. A prática da moderação também ocorre quando, por um momento de desatenção, nos vemos neutros diante de uma oportunidade de conquistar um benefício e, ao pararmos para refletir, avaliamos que vale mesmo a pena buscá-lo — o que nos tira do estado de neutralidade emocional e nos leva a vivenciar o anseio. Um exemplo desse “sair da neutralidade” para desejar um benefício é quando, por um instante, deixamos passar que determinada situação pode nos levar ao desenvolvimento de uma virtude moral , como a coragem; mas, ao p...

O que é a virtude da brandura?

Brandura se refere à habilidade de seguir uma autorregra do tipo: “preciso buscar o melhor fim, esteja eu sentindo raiva ou não” . Em alguns casos, pode-se reconhecer conscientemente que o melhor fim é, de fato, eliminar a ameaça. Isso faz com que a raiva continue a fazer sentido — e, nesse contexto, agir motivado por ela torna-se uma escolha deliberada, embasando um ato de brandura. Um exemplo seria o de uma pessoa que faz brincadeiras constantes durante uma reunião, atrapalhando o andamento do trabalho. Ao perceber que essa conduta prejudica o grupo, decidimos intervir, chamando sua atenção. Essa intervenção, ainda que envolva firmeza, é guiada por uma escolha racional de dar vazão à raiva quando ela é adequada ao contexto — e, portanto, é um ato de brandura. A brandura também se manifesta quando estamos emocionalmente neutros, mas reconhecemos que a raiva seria, naquele momento, a emoção mais adequada. Por exemplo: podemos, por desatenção, não sentir raiva ao ver alguém praticando a...

Por que considerar a variável "tempo" é fundamental para a tomada de boas decisões?

Ser racional envolve supervisionar a linha de ação que estamos prestes a seguir e tomar uma decisão consciente de aceitá-la ou revisá-la, com base em uma ponderação das consequências que dependem de nossa rede de teorias; ou, ainda, fazer o mesmo no que diz respeito a revisar ou aceitar a inação. Bom, sabemos que as consequências são coisas que estão no futuro, que pode ser um futuro daqui a um segundo, um minuto, dez anos... E, ainda, que tais consequências podem perdurar por um segundo, um minuto, dez anos, enfim.  O tempo, então, é uma variável que levamos em consideração quando fazemos escolhas com base no que, no fundo, acreditamos ser o certo; de modo que desconsiderar tal variável significa abrir mão de agir racionalmente, uma vez que implica deixar de olhar para onde estão as consequências, que é no futuro (e deixar de, por meio de uma análise, ainda que rápida, trazê-las descontadas no tempo para o valor delas no presente, como se diz em finanças; de modo a, assim, consegu...