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O império da subjetividade sobre a realidade

Ao buscar uma base inteiramente firme para o conhecimento, Descartes acabou deslocando o eixo da verdade: o que antes se apoiava no mundo e em sua ordem comum passou a residir no interior da consciência. Em sua tentativa de fundar o saber não mais na tradição, na autoridade ou na revelação divina, mas na própria capacidade humana de pensar, ele desconfiou de tudo o que pudesse ser enganoso — dos sentidos, das crenças, dos mestres — e procurou um ponto inabalável sobre o qual pudesse edificar a ciência. Ao encontrá-lo no “penso, logo existo”, inaugurou uma virada decisiva na história da filosofia: a certeza do pensamento passou a valer mais que a certeza do mundo. Como observa Hannah Arendt, a solução cartesiana para o “pesadelo da dúvida” não foi o retorno à realidade para além dos dogmas, mas o refúgio na consciência. Diante da incerteza sobre o que é externo, Descartes descobriu uma ilha de segurança no próprio ato de duvidar: mesmo que tudo fosse falso, o fato de duvidar era indubit...

A importância da dúvida em tempos de certeza

A dúvida cartesiana marcou um ponto de inflexão na história do pensamento ocidental. Ao propor que tudo deveria ser posto em questão até que algo se mostrasse absolutamente indubitável, Descartes abriu o caminho para uma nova forma de rigor intelectual, uma ciência que se pretendia autônoma em relação à religião. No entanto, ao atacar as certezas de maneira tão radical, essa mesma dúvida atingiu também as certezas religiosas, abalando a confiança tradicional no fundamento divino do conhecimento. Neste sentido, a fé moderna passou a ser atravessada pela dúvida, e, a partir dessa dúvida, surgiram novas exigências: (1) a necessidade de tratar as coisas como hipóteses; (2) a diligência de testá-las; e (3) tentar alcançar o sucesso nesses testes, que, em caso de comprovação, coincide com o alcance de verdades — ainda que provisórias. Desse modo, a dúvida, ao invés de paralisar, transforma-se em atitude investigativa; e longe de dissolver o valor da verdade, acabou fundando um novo modo de r...

Por que as pessoas têm dificuldade em lidar com críticas construtivas?

A gente costuma ouvir que existem dois tipos de crítica: a destrutiva e a construtiva — ou, em outras palavras, o simples ataque e o feedback genuíno. Mas, na prática, a maioria das pessoas tende a reagir a qualquer tipo de crítica como se fosse uma ofensa pessoal. Por quê? A resposta está na nossa história evolutiva. O ser humano é, por natureza, um animal social. Durante milhares de anos, viver em grupo foi essencial para sobreviver — era no grupo que encontrávamos proteção, comida e parceiros. E dentro desses grupos, o status social tinha (e ainda tem) um papel fundamental: quem tinha mais prestígio tinha acesso a mais recursos e segurança; quem estava abaixo, passava mais dificuldade. Uma das formas de conquistar status sempre foi ser bom em algo — caçar melhor, prever o tempo, curar ferimentos, fabricar ferramentas. Agora imagine o que acontecia quando alguém apontava que você não era tão bom assim quanto parecia. Isso não era apenas um comentário: era uma ameaça real ao seu lugar...

Como Tomás de Aquino transformou a ética das virtudes em uma ética do dever?

Aristóteles inaugurou a sistematização escrita de distintos temas, tornando-se o fundador das bases filosóficas de uma miríade de disciplinas. No entanto, os campos ligados à vida coletiva, como a ética e a política, foram prejudicados em seu desenvolvimento. Isso ocorreu em grande parte pela negligência em relação aos seus escritos, muitas vezes utilizados apenas como justificativa para crenças religiosas, em vez de como ponto de partida para a descoberta de verdades. Nesse contexto, o trabalho de Tomás de Aquino é digno de nota. Em sua síntese cristã, ele não buscou nos escritos de Aristóteles um meio de desvendar a natureza em si, mas os subordinou à doutrina cristã, transformando-os em instrumentos para justificar a fé. Com isso, a ética das virtudes proposta por Aristóteles, centrada na tomada de decisões prudentes com base no saber e no discernimento pessoal, foi reinterpretada como uma ética do dever, fundamentada na obediência a preceitos gerais revelados por Deus. Essa transfo...

Por que a prática de vícios é fundamental para o desenvolvimento das virtudes?

Por mais surpreendente que pareça, conhecer os vícios, e até experimentá-los, em certa medida, é essencial para o desenvolvimento das virtudes.  Isso porque, como ensina Aristóteles, (1) a virtude está no meio termo entre dois vícios, sendo que um deles costuma estar mais próximo da virtude do que o outro; e (2) encontrar esse meio termo é extremamente difícil.  Essas duas afirmações implicam que precisamos, primeiro, reconhecer qual vício está presente em nossa personalidade e, em seguida, buscar nos aproximar da virtude correspondente. Porém, nesse esforço, é comum acabarmos cometendo o vício oposto ao nosso, e tudo bem. Esse desvio faz parte do processo de aprendizado.  Por exemplo, alguém que se reconhece como covarde precisa aceitar que, ao tentar ser mais corajoso, pode acabar cometendo atos temerários, ou seja, se expondo a riscos desnecessários. Tais exageros, no entanto, contribuem para o enfraquecimento gradual da covardia.  Com o tempo, e a partir da refle...

Quais são os pontos fortes e fracos do estoicismo?

Em sua obra Teoria dos Sentimentos Morais , Adam Smith nos oferece uma boa síntese do pensamento estóico, e então procede com suas considerações a respeito dela. Inspirado por tal atitude, aqui busco fazer o mesmo, mas de acordo com a minha visão sobre o estoicismo. Neste sentido, me valho da síntese elaborada pelo filósofo, lapidando-a em algumas poucas imprecisões (e aprofundando alguns aspectos), para então abordar o que vejo serem pontos fortes e fracos de tal pensamento. Síntese do pensamento estóico De acordo com Zenão, fundador do estoicismo, todo ser vivo é naturalmente inclinado à autopreservação e dotado de amor por si mesmo. Isso o leva a buscar manter sua existência e todas as partes da sua natureza na melhor condição possível. No ser humano, esse instinto abrange tanto o corpo quanto a mente, com todas as suas faculdades, e orienta-o a conservar e aperfeiçoar essas partes conforme a razão natural.   Assim, tudo o que favorece a manutenção dessas partes – como saúde, vi...

Como é a estrutura da evolução do saber humano?

Gosto muito da metáfora da árvore que Thomas Kuhn usa para ilustrar a evolução do conhecimento humano. Ela não pretende descrever uma estrutura exata, mas sim destacar que o conhecimento não evolui de forma linear. Em certos casos, teorias antigas — que estariam nas partes mais baixas da árvore — podem ser superiores a teorias mais recentes, situadas em galhos mais altos.  Essa metáfora pode ser expandida. Além de representar a não linearidade da evolução do conhecimento, ela também pode nos ajudar a entender sua estrutura . Nesse sentido, podemos imaginar: As raízes : representam as estruturas cognitivas básicas, cuja função é absorver elementos do mundo exterior para alimentar o pensamento. A seiva : simboliza os raciocínios. São eles que percorrem toda a estrutura da árvore e, quando conduzem a conclusões sólidas, geram crescimento. O tronco : formado por conclusões básicas e autoevidentes — verdades que até os animais não humanos são capazes de perceber, como a exist...