O império da subjetividade sobre a realidade
Ao buscar uma base inteiramente firme para o conhecimento, Descartes acabou deslocando o eixo da verdade: o que antes se apoiava no mundo e em sua ordem comum passou a residir no interior da consciência. Em sua tentativa de fundar o saber não mais na tradição, na autoridade ou na revelação divina, mas na própria capacidade humana de pensar, ele desconfiou de tudo o que pudesse ser enganoso — dos sentidos, das crenças, dos mestres — e procurou um ponto inabalável sobre o qual pudesse edificar a ciência. Ao encontrá-lo no “penso, logo existo”, inaugurou uma virada decisiva na história da filosofia: a certeza do pensamento passou a valer mais que a certeza do mundo.
Como observa Hannah Arendt, a solução cartesiana para o “pesadelo da dúvida” não foi o retorno à realidade para além dos dogmas, mas o refúgio na consciência. Diante da incerteza sobre o que é externo, Descartes descobriu uma ilha de segurança no próprio ato de duvidar: mesmo que tudo fosse falso, o fato de duvidar era indubitável. Daí nasce uma espécie de ciência interior — uma investigação metódica voltada para os processos da mente, para o que a consciência produz e reconhece em si mesma.
No entanto, Arendt observa que, com Descartes, a verdade, antes buscada no que é comum e compartilhável, passa a ser medida pela sinceridade com que o sujeito exprime suas convicções. O critério do real deixa de ser o que se mostra a todos e passa a ser o que o indivíduo pode atestar como autêntico para si. O resultado é uma espécie de solidão cognitiva: o homem torna-se a medida do que afirma ou nega, e o mundo se reduz àquilo que aparece em sua consciência.
O legado de Descartes é, portanto, ambíguo. Ajudou a libertar o pensamento da autoridade religiosa, mas ao custo de afastá-lo da realidade compartilhada. Encorajou a investigação do eu, mas abriu espaço para perspectivas que tratam a subjetividade como soberana frente à realidade. Como resultado, vivemos em um tempo em que muitos não se preocupam em compreender o real (mas, dogmaticamente, em afirmar-se como reais) — e em que a “verdade de cada um” compete com a verdade observável (convertendo o discurso público em uma disputa de percepções inconciliáveis).
Contudo, o próprio caminho aberto por Descartes também contém o princípio de sua correção. A dúvida, quando levada a sério, não se satisfaz com certezas interiores: ela exige confronto com o mundo, com aquilo que pode ser verificado e partilhado. É nesse retorno ao comum que a verdade deixa de refletir as convicções individuais e volta a oferecer o chão sobre o qual se edificam a ciência e a convivência.
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