Como Tomás de Aquino transformou a ética das virtudes em uma ética do dever?

Aristóteles inaugurou a sistematização escrita de distintos temas, tornando-se o fundador das bases filosóficas de uma miríade de disciplinas. No entanto, os campos ligados à vida coletiva, como a ética e a política, foram prejudicados em seu desenvolvimento. Isso ocorreu em grande parte pela negligência em relação aos seus escritos, muitas vezes utilizados apenas como justificativa para crenças religiosas, em vez de como ponto de partida para a descoberta de verdades.

Nesse contexto, o trabalho de Tomás de Aquino é digno de nota. Em sua síntese cristã, ele não buscou nos escritos de Aristóteles um meio de desvendar a natureza em si, mas os subordinou à doutrina cristã, transformando-os em instrumentos para justificar a fé. Com isso, a ética das virtudes proposta por Aristóteles, centrada na tomada de decisões prudentes com base no saber e no discernimento pessoal, foi reinterpretada como uma ética do dever, fundamentada na obediência a preceitos gerais revelados por Deus. Essa transformação não substituiu a filosofia aristotélica por outra, mas a integrou de modo subordinado à teologia cristã.

As consequências dessa mudança foram significativas. Para Aristóteles, era possível alcançar a verdadeira felicidade neste mundo por meio da prática das virtudes. Para Aquino, no entanto, tal felicidade só poderia ser plenamente vivenciada no encontro com Deus, em uma dimensão que ultrapassa a vida terrena. Assim, a decisão prudente, fruto da reflexão autônoma, tornou-se menos importante do que o cumprimento dos mandamentos divinos, considerados condição indispensável para a retidão da vontade e para a salvação futura.

Além disso, Aquino elevou a virtude da caridade a uma posição de superioridade sobre todas as demais virtudes morais, atribuindo-lhe a função de orientar e informar as outras. Com isso, deslocou a prudência da centralidade que possuía na filosofia aristotélica. Na prática, isso significa que, em situações de conflito entre agir com generosidade ou seguir outro curso de ação, a generosidade deveria prevalecer automaticamente, sem necessidade de ponderar sobre as consequências ou sobre qual decisão seria realmente a mais prudente.

O resultado da reinterpretação de Aquino é claro: quando os mandamentos ou a caridade entram em jogo, a prática da virtude deixa de ser fruto de uma reflexão prudente e autônoma e se transforma, antes, em um ato de obediência. Para Aristóteles, porém, obediência não é virtude. Virtude é decidir e agir com sabedoria, escolhendo conscientemente o melhor caminho entre as possibilidades. Nesse sentido, a mudança operada por Tomás de Aquino não apenas subordinou a filosofia de Aristóteles à teologia cristã, mas também deslocou a ética das virtudes de seu núcleo original, transferindo-a do campo da reflexão racional para o da submissão à lei divina.

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